
Acabei de ler Delírio de Damasco, da Veronica Stigger, e fiquei com a sensação de que entrei num ônibus lotado e fui obrigada a ouvir todos os diálogos que normalmente ignoramos, mas, desta vez, sem poder desviar o olhar. Conheci o livro depois de visitar o blog da Gabes, o Fugi de Casa. Li um post ótimo em que ela falava sobre a obra da Veronica Stigger e fiquei morrendo de curiosidade. Resolvi começar por esse, dos vários que ela linkou como sugestão.
O livro é a reunião de frases que a autora coletou de fragmentos de conversas ouvidos na rua, de familiares ou amigos. Antes de virar este pequeno livro, foi uma intervenção na Mostra Sesc de Artes, em São Paulo. O espaço designado para o trabalho foram os tapumes da construção da unidade da Rua 24 de Maio, no centro da cidade. As frases são curtas, cortantes, muitas vezes absurdas, carregadas de ironia e de uma crueza que só a linguagem oral pode ter. Stigger coletou essas falas soltas do cotidiano como quem faz uma arqueologia da vida presente: fragmentos de conversas alheias que escapam no meio do caminho e grudam na gente como poeira. Ditas assim, sem contexto, elas provocam riso, incômodo, estranhamento. Parecem pequenas bombas disfarçadas de banalidade.

Nem sempre o que ouvimos é agradável, e talvez aí esteja a força desse livro. As frases capturadas por Veronica Stigger não são polidas, nem editadas para agradar. Muitas vezes, quando as pessoas pensam que ninguém está ouvindo, dizem exatamente o que pensam. E o pensamento, às vezes, é um pequeno monstro movido a preconceito, ignorância ou crueldade cotidiana. Há uma crueza nesses fragmentos que incomoda porque revela verdades. Não as verdades consideradas universais, são falas reais, ditas sem filtro por gente comum. É quase como olhar pelo buraco da fechadura da linguagem e ver, do outro lado, o que gostaríamos de fingir que não existe.
Já pensei em fazer esse exercício, de anotar frases tortas que escuto por aí, mas sou desatenta demais. E ainda por cima ando sempre de fone no ônibus, ouvindo música instrumental pra conseguir me concentrar e ler. Ainda assim, esse livro me lembrou do quanto a cidade fala, e do quanto a gente se acostuma a não ouvir. Talvez eu nunca consiga virar colecionadora de diálogos, como Stigger, mas fico feliz que alguém tenha feito isso com tanto olhar e escuta. Tem poesia nesses estilhaços de linguagem, mesmo quando o que sobra é só silêncio constrangido ou uma gargalhada nervosa.
