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O Continente vol. 1 (O Tempo e o Vento #1), de Erico Verissimo

O primeiro volume de O Continente é a abertura da obra prima de Erico Verissimo, O Tempo e o Vento (publicado em três romances: O Continente, O Retrato e O Arquipélago – os dois primeiros possuem dois volumes, enquanto o terceiro foi dividido em três). Publicado em 1949, a intenção de Erico era escrever apenas O Continente, mas a história tão grandiosa da saga familiar que é também um microcosmo da História do Rio Grande do Sul pedia mais. E Erico nos deu de presente, alguns anos mais tarde, os dois volumes de O Retrato e os três volumes de O Arquipélago.

Reeditado inúmeras vezes pela Editora Globo, hoje as obras de Erico são publicadas pela magnífica Companhia das Letras. E eu tive o prazer de ler na primeira e segunda vez, há muitos anos, essa primeira parte de O Tempo e o Vento numa publicação da editora Globo e agora li numa edição linda que integra o box de O Tempo e o Vento da Companhia das Letras. E nas três vezes que li fiquei encantada com cada palavra que Erico escreveu.

É muito difícil escrever resenha de um livro como esse, tão bom, tão clássico, tão importante. Eu só tenho elogios. Mas vamos lá. Por que esse livro é muito bom? Em primeiro lugar por conta da história que é narrada. O Continente fala das origens do processo de formação do estado do Rio Grande do Sul, da formação do povo gaúcho. E para isso Erico criou um romance histórico perfeito, que mistura sua ficção tão bem trabalhada com dados e personagens históricos que são integrados ao enredo de tal forma que é natural pensar que aquilo tudo realmente aconteceu. É um romance, e também uma aula de História. E que aula. Confesso que eu não sou muito conhecedora da História de meu próprio Estado – uma vergonha, eu sei, tanto por ter nascido e vivido a vida toda aqui, quanto por ser formada em História – mas muito do que aprendi sobre ela veio da literatura e em especial desse livro (e do segundo volume também, é claro). E é uma ótima maneira de entender os processos que levaram o povo gaúcho a ser da maneira que é.

O primeiro tomo de O Continente contém os capítulos A Fonte, Ana Terra, Um Certo Capitão Rodrigo que narram a origem da família Terra e Terra Cambará. A Fonte é dedicada à vida de Pedro Missioneiro, um índio que vive numa redução Jesuítica, filho de uma índia que chegou por lá no dia do parto e um bandeirante. Nesse capítulo o autor volta no tempo até meados do século XVIII para narrar a vida nas Missões, as guerras guaraníticas e o genocídio dos índios. O capítulo intitulado Ana Terra conta a história da mulher forte, batalhadora, isolada do mundo, em um pequeno pedaço de terra perdido no interior do que veio a ser o Rio Grande do Sul em pleno século XVIII, que se apaixona por Pedro e com ele tem um filho. É neste capítulo também que Ana Terra, uma das personagens femininas mais marcantes que eu já conheci, chega a Santa Fé, a cidade microcosmo do Rio Grande do Sul, onde todo o restante dos fatos narrados na trilogia ocorre. Ana se estabelece nesse povoado que está nascendo e cria seu filho sozinha, depois da tragédia que matou todos os homens de sua família (uma das cenas mais impressionantes que li, e o impacto que me causou foi o mesmo em todas as minhas leituras, mesmo com um intervalo de 10 anos entre elas). Esse capítulo é tão bom, tão gostoso de ler e tão completo em termos de narrativa, enredo, temática, estilo, personagens, que pode ser lido separadamente, inclusive ele foi editado como livro e é possível lê-lo sem precisar ler o restante da obra (o que eu já adianto será um completo desperdício, pois a obra completa é imperdível).

Em Um Certo Capitão Rodrigo, outro capítulo que já foi lançado como livro separadamente por todas as suas qualidades literárias e o destaque merecido que tem dentro da obra, narra a chegada de um forasteiro, um soldado aventureiro, em Santa Fé, já no século XIX. Esse homem misterioso é o capitão Rodrigo Cambará, que retrata o homem gaucho, tanto pela personalidade quanto pelas vestimentas. E ele representa um problema para os pacatos moradores do povoado, sua apresentação já causa confusão no primeiro momento dele no lugar:

“– Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!” (p. 209)

Ao que Juvenal Terra responde: “Pois dê”, e se apronta para a briga. O primeiro encontro entre os Terra e os Cambará não é nada amigável, mas depois o quadro terá uma grande mudança. Juvenal Terra é filho de Pedro Terra, portanto neto de Ana Terra, irmão de Bibiana Terra, a mulher que casou com o capitão, dando origem ao clã Terra Cambará. Rodrigo é um homem que precisa da guerra para viver, é valente e já lutou em muitas delas e a mais importante delas foi a Guerra dos Farrapos ou Revolução Farroupilha, a última em que participou. Um momento muito importante no livro, pois ali em Santa Fé, como não poderia deixar de ser, também ocorreu a disputa política entre republicanos e monarquistas. Rodrigo estava a lado dos republicanos e a família Amaral, antagonistas dos Terra e dos Terra Cambará, defende a monarquia. A disputa entre Rodrigo e Bento Amaral e sua família não se dá apenas no âmbito da guerra, eles representam diferentes posições políticas, representações culturais e econômicas do Rio Grande Grande do Sul do século XIX, além é claro, de inicialmente disputarem o amor de Bibiana.

Cada capítulo relata um período da história dessa grande família dos Terra/Terra Cambará e também do Rio Grande do Sul. Ademais, cada um dos capítulos termina com um trecho em que Erico se afasta de seus personagens e conta determinado acontecimento histórico utilizando personagens que servem de ligação entre um capítulo e outro. A Fonte, Ana Terra, Um Certo Capitão Rodrigo são entrecortados pelos fragmentos de O Sobrado. Uma espécie de viagem no tempo onde o passado da família, nas suas várias gerações, está lado a lado com o presente que o cerco ao casarão da família Terra Cambará representa na narrativa. Cada fragmento corresponde a um dia e uma hora de Junho de 1895, em plena Revolução Federalista no Rio Grande do Sul. Lá dentro do sobrado da família homens, mulheres, crianças, idosos e soldados passam a míngua, por falta de alimento, água, tratamento médico para Alice, que está para ter um filho, esposa do chefe da família, Licurgo Cambará. Licurgo se nega a pedir trégua para chamar um médico que atenda a todos os doentes e principalmente sua esposa. Não quer ferir seu orgulho e tem certeza de sua vitória ao lado dos Republicanos. Mais uma vez Amarais e Cambarás se enfrentam cada um de um lado da disputa política.

É possível ler cada capítulo sem ler os fragmentos de O Sobrado para depois ler de um gole só, mas, particularmente, eu acho que perde um pouco a sensação de deslocamento e de descobrir aos pouquinhos o que cada capítulo contribui para os acontecimentos de 1895 que a leitura na sequência proposta pelo autor proporciona. A história em O Sobrado avança à medida que o leitor conhece um pouco mais da história dos Terra Cambará. Essa narrativa não linear é uma delicada cereja para o delicioso bolo que é a obra.

Narrado em terceira pessoa, o narrador observa as ações, sentimentos e pensamentos dos personagens, acompanhando-os com um olhar aguçado. E eu diria que esse narrador é contagioso, pois ele segue alguns personagens conforme eles se aproximam do núcleo da trama, ou seja, muitas vezes vemos a história sob o olhar de personagens secundários como o Padre Lara, grande amigo do capitão Rodrigo, que o aconselha e tem longas conversas com o protagonista do capítulo e serve também como um ponderador das ações do capitão.

Existem muitos temas importantes abordados nessa obra, entre eles eu destaco a diferença entre os personagens homens e as personagens mulheres. Diferenças que são pautadas culturalmente, é claro, e muito bem retratadas nesse livro. O mundo masculino é regulado pela guerra, e existe certa incompreensão dessa necessidade da guerra por parte de Ana Terra.

“Para que tanto campo? Para que tanta guerra? Os homens se matavam e os campos ficavam desertos. Os meninos cresciam, faziam-se homens e iam para outras guerras. Os estancieiros aumentavam as suas estâncias. As mulheres continuavam esperando.” (p. 181)

A guerra está presente o tempo todo na obra, as façanhas da conquista do sul, do processo de ocupação das terras, da garantia das terras em face dos castelhanos, a instalação de uma sociedade civil nesse território de fronteira. A História do Sul é construída entre uma guerra e outra. No entanto, a obra não tem um caráter belicista. Pelo contrário, o tempo todo se mostra o preço pago por todas as guerras, que para toda luta há um sacrifício, de que a vida breve dos personagens masculinos é conseqüência das guerras. E dessas guerras surgem heróis: Sepé Tiaraju, admirado por Pedro Missioneiro, o capitão Rodrigo, apoiador da causa dos mais fracos e Licurgo, republicano e abolicionista.

É impossível escrever sobre esse livro sem destacar as personagens femininas: Ana Terra, Bibiana Terra e Maria Valéria. Se a liderança é masculina, por homens que lutam nas guerras combatendo o poder e acabam por torna-se parte dele, o enredo do livro é dominado pelas mulheres. O romance que narra tantas guerras e o estabelecimento de uma sociedade machista é visto a partir do ângulo feminino. Elas representam as muitas mulheres que viveram esperando, viveram no luto por seus maridos e filhos e viveram devastadas pelos efeitos da guerra. Mas ao mesmo tempo em que esperam – uma atitude que pode se considerar passiva –, elas resistem aos infortúnios e garantem a subsistência e continuidade de suas famílias. São mulheres fortes, que lutam a pequena luta de cada dia em suas casas, mesmo que essa luta seja ladeada pela espera.

Maria Valéria pouco aparece nesse livro, mas ela terá uma importância muito grande nos outros. Mas Ana Terra e Bibiana Terra protagonizam uma disputa acirrada para saber qual a personagem favorita. Hora penso que é Ana Terra, com esse nome lindo, forte e com uma personalidade tão linda e forte quanto o nome, que enfrentou o diabo, superou, viveu sua vida dignamente, fez pequenas conquistas diárias e com uma visão de mundo muito lúcida e perspicaz. Hora penso que é Bibiana, neta de Ana Terra, que também tem uma personalidade belíssima, que se apaixona perdidamente pelo capitão Rodrigo e investe nesse amor mesmo sabendo que esse relacionamento tinha tudo para dar errado, cria o filho e o neto, batalha por reconquistar as terras que seu pai perdeu, mesmo que isso custe caro demais, enfrenta uma batalha árdua com a nora Luzia e preserva os ensinamentos de sua avó. A batalha não tem vencedora, deu empate, as duas me conquistaram para sempre.

A união dessas duas famílias tão distintas em que os Terras representam o perfil do gaúcho vinculado com a terra e os Cambarás representam o lado político, altivo e bravo, é o primeiro passo para a formação da classe dominante do Rio Grande do Sul. A história dessa família se funde com a história da região mostrando a ascensão de um grupo social que surge no período colonial, se firma economicamente no período monárquico que, no entanto, só chega ao poder político com a mudança de monarquia para República no final do século XIX. De dominados a dominadores, no âmbito político. Tudo isso sob a perspectiva feminina, recheado de personagens fortes, alguns carismáticos, outros nem tanto e com um forte teor de crítica social e um pano de fundo histórico que confere um tom épico ao romance. Não tem como não gostar. Está entre meu favoritos de todos os tempos, super recomendo.

O Continente vol. 1 (O Tempo e o Vento #1)
Erico Verissimo
Companhia das Letras
414 páginas
Skoob | Goodreads | Submarino
[xrr rating=5/5]

Anarca, feminista, vegana, cat lady, bookworm, roller derby, hiperbólica, entusiasta das plantas e constante aprendiz. Rainha de paus, professora de história, amante de histórias. Meu peito é de sal de fruta fervendo num copo d'água. ♀️✊Ⓥ

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24 de maio de 2012 9:15 pm

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