Alguns anos atrás iniciei o trabalho docente, em um dos meus turnos de trabalho, numa escola diferente. E como de praxe, fui me familiarizando aos poucos com a rotina escolar. Uma das coisas que mais chamaram minha atenção nessa rotina foi o fato de termos de buscar as turmas nas filas na quadra da escola no início das aulas e após o recreio. Uma novidade pra mim, pois até então tinha trabalhado em escolas que a fila já era passado. E essa é uma prática que considero desnecessária em se tratando de adolescentes. Mas até aí, ok (um ok com cara de resignação e não de aceitação).
Mas que relação tem a fila com gênero? Essa rotina é marcada por gênero por dois motivos, o primeiro é que as filas são separadas entre meninos e meninas (na escola não tinha nenhuma aluna ou aluno transgênero conhecide e, portanto, nunca houve questionamento em relação a essa divisão por parte dos estudantes); e o segundo e mais “curioso” foi perceber que em todas as turmas uma prática é bastante recorrente: mesmo com a bagunça ao conduzir as turmas, as filas deixando de ser fila aos poucos conforme vamos avançando em direção à sala de aula, sempre que chegamos na porta da sala a fila de meninos para na porta e cede lugar para que todas as meninas entrem na sala primeiro. No início estranhei e questionei alguns alunos que estavam esperando do porquê eles faziam isso. Muitos respondiam que era por educação e outros porque era regra da escola. Fui perguntar à diretora, que me respondeu não ser uma regra mas um “acordo de civilidade e cavalheirismo” feito com eles desde o primeiro ano.
Nas aulas seguintes tentei conversar em sala sobre essa rotina e fui surpreendida com falas naturalizadoras. Comecei a questioná-los e um ou outro estudante expressaram um desconforto com a situação por vários motivos. Entre esses motivos estavam: os meninos não achavam que era assim que respeitariam as meninas de verdade e as meninas acreditavam que isso demonstrava que elas eram diminuídas com essa postura de cavalheirismo. Essas ideias não eram majoritárias, mas estavam ali, pipocando entre algumas cabeças. Isso já me deixou muito entusiasmada para tentar semear umas ideias diferentes naquele jardim carregado de rotinas ultrapassadas.
Surgiu uma combinação com as turmas. Infelizmente essa combinação aconteceu muito raramente tendo em vista que são anos de “treinamento” contrário. A combinação? Fazer a fila das meninas entrar primeiro em uma aula e a dos meninos entra primeiro na aula seguinte. Quando eles lembravam disso, na maior parte das vezes, a fila dos meninos já estava parada enquanto a das meninas estava entrando. Parece uma combinação boba, mas surgiu de algumas falas de alunas e alunos enquanto discutíamos sobre as rotinas escolares e o porque de elas existirem. Nos debates apareceram falas que denotavam surpresa a respeito da falta de questionamento até então, pois eles próprios nunca tinham parado pra pensar nisso e nenhuma professora ou professor parecia se importar com a existência da fila ou com a divisão entre meninos e meninas. Os próprios estudantes começaram a refletir sobre o porquê de se fazer fila, por que uma fila dividida entre meninos e meninas e as meninas entrarem na sala primeiro, será que é somente organização? Ou faz parte de uma cultura escolar marcada por questões mais profundas? Antes tudo era sempre visto como natural e necessário para manter a ordem na escola. A partir dos debates as coisas deixaram de ser naturais, apesar de não ocorrer uma mudança significativa e palpável.
No ano passado, uma nova escola, e mais uma vez a fila. Como eu não tenho autoridade para eliminar a fila da rotina, optei por solicitar que pelo menos ela fosse única na frente da minha sala, por ordem de chegada. Isso foi possível pois, nessa escola, a fila ocorre em frente à sala e não precisamos caminhar pelo pátio da escola. Passou a ser comum ouvir os gritos de fila única em frente à sala de história para que todas, todos e todes pudessem escutar e ser relembrado da combinação. Todo o debate que realizei anteriormente estava colocado novamente e é preciso desconstruir diariamente aquilo que todo o restante da escola reproduz automaticamente, sem questionamentos. Mas considero a simples proposição e o questionamento uma das pequenas vitórias diárias que colecionamos enquanto docentes.
"1937 Vintage High School Class Picture" by Tobyotter is licensed under CC BY 2.0
Certeza que isso marcou em muitos deles. Tu é maravilhosa ❤
Eu espero que tenha sido uma sementinha. <3
Bela reflexão.
Passo o mesmo na escola. Professores e estudantes não gostam de fila, mas ainda fazem por motivos de uma suposta organização.
Acho que isso tem muito a ver com as análises do Foucault sobre normalização. E esse lance de dividir em gêneros, normaliza a ideia de somente duas possibilidades, ou é menina ou menino.
Que incrível que você tenha não só se questionado mas questionado eles também, os feito pensar em algo que eles haviam naturalizado! Eu trabalhei pouco com adolescentes, na verdade eu passei metade do ano passado em substituição a uma colega dando aula para o ensino fundamental II e foi uma experiência maravilhosa, que me encheu de motivação. Achei que estar em contato com eles me fez resgatar esperanças e uma energia que eu já tinha até esquecido que tinha (contando que faz quase 20 anos que saí da adolescência, né…). É muito legal a abertura deles ao novo e essa nova geração me parece muito mais questionadora que a minha (ainda que às vezes precise desses empurrãozinhos como você deu)
Gostei muito do seu blog, vou tentar assinar seu feed para não perder seus textos!
🙂
Trabalhar com adolescentes é uma das coisas mais legais que tem. Nos dias em que estou mais pra baixo a sala de aula me transforma. Parece mágica. Eu amo demais.
E muito, muito, muito obrigada pelo comentário e por querer acompanhar. Juro que agora que terminei a dissertação de mestrado vou me dedicar mais ao blog!
Beijos.
Eu nunca na minha vida tinha parado para pensar isso. Na minha escola de ensino fundamental, até o 4º ano, mais ou menos, também tem essas filas, separadas por gênero e altura, e além disso, qnd havia atividades fora da escola, mesmo os alunos adolescentes seguiam essa mesma regra. Achei muito importante você trazer essa reflexão. Como eu queria ter tido uma professora assim
super beijos
Carol Justo | Justo Eu?!
Obrigada pelo comentário Carol.
É muito comum, diria que é quase unanimidade, as filas divididas entre meninos e meninas. E o quanto isso educa para uma cultura de oposição é estarrecedor. Essa divisão ensina muito, não no sentido positivo de ensinar. E são coisas tão pequenas que podem ser mudadas e transformar tanto. Sigo tentando por aqui, agora com outros meios, devido ao Ensino Remoto, né.
Beijão.
Nossa, Daniela.. que reflexão super necessária que você fez. Eu tinha até me esquecido sobre isso de fazer fila na escola e naquela época também nunca me questionei sobre isso. Você está fazendo um diferencial enorme na educação dos seus alunos. Que você consiga espalhar mais ainda essa sementinha!