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Precisamos falar sobre o Kevin, de Lionel Shriver

O ano está no início, portanto ainda é cedo para dizer que Precisamos falar sobre o Kevin está entre os melhores livros lidos do ano. Mas mesmo assim vou arriscar. Na verdade, eu não sei por onde começar a escrever sobre esse livro. É um livro perturbador? Aterrorizante? Triste? Brilhante? Ou tudo isso junto? O enredo, a narrativa, o texto e os personagens se entrelaçam e deixam o leitor estupefato, estarrecido. Pelo menos não consigo pensar em adjetivos melhores para definir como eu fiquei logo no início da leitura.

Este é um livro epistolar, ou seja, a narrativa ocorre em formato de cartas. Uma sucessão delas, escritas por Eva Khatchadourian, uma mãe da classe média dos Estados Unidos descendente de armênios, viajante, dona de uma editora de livros de viagem, que tem um gosto pela liberdade, casada com um americano típico que é o destinatário de sua correspondência. Sobre o que ela fala? Sobre Kevin, obviamente. Kevin Khatchadourian é seu filho e ele cometeu um massacre na sua escola dois anos antes de Eva começar sua correspondência. Cada capítulo é uma carta escrita por ela, na qual ela narra o antes e o depois do nascimento de seu filho e as consequência dos atos do adolescente.

As 100 primeiras páginas, mais ou menos, têm um ritmo mais lento, as cartas são sobre a sua vida, o dia a dia no casamento e também uma ponderação sobre a situação do casamento antes do nascimento do filho. Até a decisão de ter um filho é analisada, e nesse ponto eu criei um laço de simpatia para com Eva. Ela tem dúvidas sobre a maternidade, e decide ter um filho por uma série de motivos errados, a começar pelo fato de que ela está seguindo apenas a vontade do marido. Já na gravidez um conflito entre ela e o cônjuge começa a se desenhar. Ela se sente propriedade de alguém, coisa que nunca sentiu antes: desde quando grávidas são propriedade de alguém? Ela se pergunta. Ela, enquanto grávida, se sente propriedade do marido, do obstetra, de todos, que sempre opinam sobre o que ela deve e não deve fazer devido a sua condição.

Com o nascimento do filho, a narrativa começa, agora sim, a ser All About Kevin.  E sobre a maternidade, consequentemente. E o ritmo começa a ser ditado por Kevin, pelos seus atos e também pelas dúvidas, medos, negligências e conflitos internos e externos de Eva com o filho e com o marido. Aos poucos ela vai contando para o marido tudo aquilo que ele não viu e não queria ver no filho. Todas as diabruras infantis que ele aprontou que foram aos poucos se tornando intervenções cruéis na vida dos outros e da própria família. Ela narra o passado e também o presente, fala sobre como ela se sente dois anos depois da tragédia, sobre como as pessoas a trataram depois de tudo o que aconteceu, fala sobre as visitas ao filho no centro de detenção para menores, fala sobre como ele não se arrepende e sobre como ele até sente orgulho do que fez, do quanto ele continua uma incógnita para ela, mesmo depois de quase 18 anos de seu nascimento.

Precisamos falar sobre o Kevin é um livro escrito depois dos episódios de Columbine, e trata de uma tragédia nacional. A narrativa se passa mais ou menos durante as eleições presidenciais de 2000 nos Estados Unidos, mas esse evento é apenas um pano de fundo para as cartas de Eva, ela comenta algumas coisas sobre o que está acontecendo nas eleições, mas qualquer coisa é irrelevante é quando sua família foi destruída pelos eventos daquela “quinta”. E o capítulo onde acontecimentos de “Quinta” são descritos é aterrorizante.

É claro que a narrativa em primeira pessoa de Eva deveria nos levar a desconfiança extrema desse narrador, nos levar a não acreditar em tudo o que ela diz, afinal de contas ela está expondo o seu lado da história. No entanto, Lionel Shriver tem uma carta escondida na manga. Eva não esconde quem ela é ao falar do filho. Eva não chega a ser um exemplo de mãe, ela é negligente, fria, egoísta durante muitas passagens, e por mais que ela tente se aproximar do filho ou demonstrar algum afeto, ela não consegue. Usando desse artifício, Lionel tira a dúvida do leitor em relação à veracidade do que está sendo narrado. Na verdade, eu entrei em parafuso por causa disso. Eu queria duvidar, por que era um narrador em primeira pessoa, eu tinha que duvidar, mas eu simplesmente não conseguia. Acreditei piamente em tudo que Eva escreveu.

E Eva nos mostrou detalhes bastante peculiares sobre Kevin, e muitos deles são monstruosos. Ele é perfeitamente escrito – sua pouca simpatia e sua crueldade são aterradoras. Ele divide para conquistar (palavras de Eva) desde o nascimento. Ele afasta Eva de seu marido desde sua concepção, mas conforme o tempo passa e a criança vai se tornando mais madura, ele usa essa estratégia com mais afinco. Kevin aterroriza sua mãe e todas as outras pessoas com as quais convive – das babás da primeira infância aos colegas da escola, professores e vizinhos – e se mostra um anjo com auréola e tudo para o pai. Ele é muito inteligente e sabe disso, usa sua astúcia para prejudicar os outros e Eva sabe disso.

As personagens centrais do livro são duas, Eva e Kevin, mas Franklin, o marido tem um papel muito importante na narrativa. Ele não vê e não quer ver o que o filho é, se deixa enganar pela máscara que o filho escolheu para usar na sua frente e está contente com isso. Mas ao fazer essa escolha ele também escolheu não acreditar na esposa, nos seus relatos que ele insiste em chamar de paranoia ou em tachar Eva como a mãe que quer o mal do filho. E devo confessar que odiei Franklin, mesmo que eu saiba que isso não estava certo, que ele só queria ser um bom pai e não fazia a mínima ideia de como fazer, a cegueira dele me irritava profundamente. Cada vez que Eva conversava com ele sobre Kevin eu tinha vontade de entrar  no livro e sacudir aquele homem e acordá-lo para o que estava acontecendo. E não bastasse a cegueira dele, teve também a indiferença com a filha mais nova. Em outra tentativa infundada de salvar o casamento, Eva engravida de novo e dá a luz a uma menina a perfeita, o oposto de Kevin. As duas têm uma ligação muito forte e a menina é tão inocente e quer a agradar tanto aos outros (inclusive o irmão que não deixou barato o nascimento da concorrência) que soava falso. O único “porém” do livro é esse, o exagero na bondade e inocência da pequena. Mas mesmo ela tinha um papel importante a cumprir nessa tragédia.

O desenvolvimento do caráter das personagens é essencial para o desenrolar de uma boa história e a autora conseguiu fazer isso com maestria, principalmente com Eva – apesar de simpatizarmos com ela, sabemos que é egocêntrica, fria, superficial, pedante – e Kevin. Não há conflitos na perfeição, por isso se esses dois personagens fossem inteiramente bons ou inteiramente maus não haveria o mínimo de reflexão para quem ler o livro. A questão é que se trata de seres humanos, que vivem em sociedade, que são responsáveis por seus atos, mas que agem impulsionados não só por instinto, mas também refletem a sociedade em que vivem.

O livro não é apenas um soco no estômago que incomoda por um tempo mas logo passa. Não, ele dá um soco no estômago a cada página para no final terminar com uma surra, espancamento completo, que te deixa desacordado. E para se recompor levará muito tempo, muito mesmo. Mas sair totalmente recomposto é impossível, sempre ficará uma sequela. Por isso o livro é estranhamente inspirador e ao mesmo tempo assustador. Mas a violência e a brutalidade não estao nas descrições de cenas sanguinolentas. Pelo contrário, poucas delas são narradas. Apesar do tom bastante descritivo da narrativa, a violência e a brutalidade estão nos diálogos, nos pensamentos, na honestidade, ao mostrar a verdade por completo, sem maquiagens ou disfarces. O livro é violento com o leitor porque nada fica de pé quando terminamos a leitura.

E ler esse livro traz uma série de questionamentos que exigem muita reflexão. Kevin  é assim por culpa da mãe? A personalidade de Kevin nasceu com ele e ele nunca seria diferente, não importa o que a família fizesse? Kevin é apenas uma semente ruim? Ele não foi amado o suficiente? Ele não teve apoio da mãe durante sua infância? O pai deveria ter agido diferente, se colocando de verdade na relação pai e filho, e não apenas interpretando o papel de pai perfeito? Eu não sei, mas o mais importante é que essas perguntas não refletem apenas uma história específica, mas dizem respeito à maternidade e a paternidade em si, e um dos méritos desse livro é que ele deixa essas e outras questões para pensarmos.

É comum vermos nos noticiários tragédias como essa, e uma ocorreu bem próximo de nós, no Rio de Janeiro em Abril de 2011. Tratar de um tema delicado como esse é bastante difícil, mas Lionel conseguiu trabalhar tão bem as personagens e o enredo que a tragédia daquela família é uma avaliação da sociedade contemporânea e se tornou quase que um grito por socorro de uma sociedade inteira. Nós fazemos parte de uma sociedade que precisa falar sobre o Kevin, falar sobre os filhos, sobre a maternidade, entender que fazemos parte de um todo, mesmo que nos recusemos.

Precisamos falar sobre o Kevin
Lionel Shriver
464 páginas
Editora Intrínsica
Skoob | Goodreads
[xrr rating=5/5]

Anarca, feminista, vegana, cat lady, bookworm, roller derby, hiperbólica, entusiasta das plantas e constante aprendiz. Rainha de paus, professora de história, amante de histórias. Meu peito é de sal de fruta fervendo num copo d'água. ♀️✊Ⓥ

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Happy Batatinha
10 de janeiro de 2012 6:16 pm

O livro é sensacional. Um dos melhores que li até agora, com certeza! Eu também me identifiquei muito com a Eva e suas neuras por ter ou não um filho. Mas apesar de ter muita raiva do Kevin por boa parte do livro, foi o final que me fez chorar. Não o final surpreendente (aquele sabe?), mas o último encontro na prisão. Chorei por Eva mas chorei mais pelo Kevin. No fim o que ele sempre quis foi o amor da mãe.

E o livro é uma referência constante pra mim. Se vejo algo na tv, penso “Kevin acha isso.” Ou “Eva pensa assim”. Shriver escreveu uma obra prima. Tô doida para ler O Mundo Pós Aniversário dela. Dissem que também é muito bom.

Smacks!

Cacá
10 de janeiro de 2012 6:34 pm

Fiquei com muita vontade de ler este livro. Os filmes já feitos a respeitos destes desastres escolares são bons e colocaram prismas interessantes, mas o olhar da mãe com certeza é bastante interessante, quando não é angustiante também, imagino…

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