No segundo volume de O Continente a saga das famílias Terra e Terra Cambará continua. Os capítulos abrangem os períodos de 1850 a 1895. Bem menos do que no primeiro tomo, que vai de 1750 a 1836 mais o ano de 1895 com O Sobrado. A estrutura do livro é a mesma do primeiro volume, trechos de O Sobrado intercalam os capítulos A Teinaguá, A Guerra e Ismália Caré. Três grandes capítulos que, ao contrário dos integrantes da primeira parte da obra, não são tão independentes e, portanto, não dariam muito certo como publicações avulsas (lembra que Ana Terra e Um Certo Capitão Rodrigo foram lançados como livros?). O tom épico ainda é marcante, porém diferente do primeiro tomo, em que a atmosfera da narrativa era mais vibrante e vigorosa, o segundo volume possui um ritmo mais vagaroso e marcado por perfis e guerras psicológicas. No entanto, mesmo com ritmos distintos, ambos são livros incríveis e completam um ao outro perfeitamente.
O Sobrado continua relatando os dias de junho de 1895, em pleno cerco ao sobrado de Licurgo Cambará, onde seus aliados e sua família passam a base de laranja e farinha, sua esposa agoniza depois de um parto complicado, seus dois filhos ainda crianças vivem como podem, ouvindo as histórias de Laurinda – empregada, escrava liberta – e Fandango, Maria Valéria tenta esconder seu amor pelo cunhado Licurgo e se divide entre cuidar dos sobrinhos e da irmã. A velha Bibiana fica no quarto, ouvindo o vento e esperando, como sempre fez em sua vida. Os outros, moradores e “hóspedes” do sobrado esperam que os federalistas se entreguem, pois a guerra está ganha em quase todo o Estado. Os conflitos da família, a personalidade de Licurgo e as relações entre eles são elevadas a um grau extremo, devido ao confinamento. A tensão domina toda a narrativa nesses trechos. E como leitora, também aguardava ansiosa pelo fim do cerco, queria respirar aliviada junto com aqueles personagens, e o último trecho é de arrepiar, muito comovente tanto pelos acontecimentos que ele narra como pela reação a eles por parte dos diferentes personagens e suas personalidades tão distintas.
No capítulo A Teinaguá, a narrativa conta a origem da misteriosa mulher que casou com Bolívar Cambará, filho de Bibiana e do Capitão Rodrigo. Luzia Cambará é uma figura atormentada, angustiada torturada pela vida que leva e ao mesmo tempo intimida seu marido, que muito pouco lembra o pai, pois Bolívar é um homem titubeante e fechado ao contrário da personalidade valente e espontânea de seu pai. E é aqui que se descobre como o Sobrado foi construído e por quem, e como ele foi parar nas mãos da família Terra Cambará. A narrativa é pontuada por um observador de fora, o médico Carl Winter, um alemão que chegou a Santa Fé de passagem e foi ficando, ficando, ficando, até não conseguir mais ir embora. Um sujeito bem diferente dos outros moradores de Santa Fé. É através dos olhos desse médico, intelectual e viajante que muitos dos acontecimentos são narrados. Inclusive algumas questões da História do Rio Grande do Sul e dos moradores do Sobrado são relatadas em cartas que ele envia para um amigo, também alemão, que se instalou na colônia alemã de São Leopoldo. Além disso, é o médico que faz a relação entre a mulher que gera discussões infindáveis em Santa Fé a respeito de seu caráter e personalidade e a figura lendária da Teinaguá. Através de seu olhar estrangeiro o médico traça um perfil dos personagens e das situações apresentadas por quase todo o livro.
No capítulo A Guerra o foco narrativo está no dia a dia de Bolívar, Luzia e Bibiana no Sobrado. Como pano de fundo a Guerra do Paraguai, apesar dessa não ser a única guerra narrada, pois existe uma disputa surda entre Luzia e Bibiana por Bolívar, pelo Sobrado e pelo neto, Licurgo Cambará – que representa para Bibiana a expressão máxima da continuação de sua família e, por conseguinte de seu amado e falecido Rodrigo Cambará. Nessa guerra íntima eu tomei o partido de Bibiana, pois Luzia não é uma pessoa fácil de conviver, além de ser racista e de possuir uma visão de mundo que não me agrada nem um pouco. Porém, tenho de admitir que em muitas de suas falas eu tive de concordar com ela. Luzia odiava a vida naquele lugar, pois ela era o contraste de tudo aquilo que Santa Fé representava, o que não é de todo ruim (ou de todo bom, depende do ponto de vista), mas uma das questões mais marcantes que ela levanta é o machismo e o papel da mulher naquela sociedade. E nisso eu tenho de dar o braço a torcer, já que o Rio Grande do Sul tem uma História de machismo e submissão da mulher que infelizmente perdura em alguns lares gaúchos. A figura de Luzia é contraditória e gera ódio dos moradores e dos leitores (pelo menos no meu caso), mas ainda assim tem um papel fundamental para a narrativa e também para lembrar que mesmo narrado sob uma perspectiva feminina O Continente retrata uma sociedade machista.
Em Ismália Caré o salto no tempo é um pouco maior. O filho de Bolívar e Luzia, Licurgo Cambará, já cresceu e vive com a mãe e a avó no Sobrado, no meio do fogo cruzado. A disputa segue e o adolescente Licurgo sente na pele as faíscas que elas soltam. Ele vive dividido entre a vida no Sobrado e a vida no Angico, as terras da família no interior da cidade. E dividido entre e avó e a mãe, Licurgo cresce e se envolve com uma moça de nome Ismália Caré, filha dos empregados do Angico. A relação entre eles é bastante complicada, Bibiana não aceita o envolvimento de seu neto com a menina, ele próprio sabe que precisa casar com uma “moça de família”, mas o romance proibido entre eles dura até mesmo depois do casamento com a prima Alice Terra.
Maria Valéria, irmã de Alice é apaixonada por Licurgo, mas reprime o sentimento por respeito à irmã e à tia Bibiana, a grande figura de todo o livro. Se no primeiro volume Bibiana é apresentada como mulher submissa ao marido, sofrida e apaixonada, nesse tomo ela está mais madura, endurecida pela vida, passando a demonstrar sua personalidade forte e dominante, onde se tornam claras sua semelhança e afinidade com a avó Ana Terra. E Bibiana também se mostrou misteriosa, mordaz, cáustica, ferina e manipuladora quando necessário, e fez de tudo para defender a continuidade dos Terra Cambará. Na difícil decisão entre ela e Ana Terra, elejo as duas como minhas personagens preferidas nessa primeira parte da saga familiar de Erico, duas das personagens mais fascinantes da Literatura Brasileira.
O Continente vol. 2 (O Tempo e o Vento #1)
Erico Verissimo
Companhia das Letras
440 páginas
Skoob | Goodreads | Submarino
[xrr rating=5/5]
Não leu ainda O Continente volume 2? Que tal começar pela resenha do primeiro volume?
1. O Continente vol. 1 (O Tempo e o Vento #1), de Erico Verissimo
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Muito bom!
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