Lendo

Confissões de um poeta

Comecei a ler Pablo Neruda logo por um livro de memórias, eu que nunca li sequer um de seus poemas. O poeta comunista conta em Confesso que Vivi sua trajetória de vida desde sua infância no sul do Chile até o 11 de setembro mais marcante da história recente da América Latina: o golpe que derrubou e matou Salvador Allende na década de 1970 no Chile.

E como esse poeta passou por coisas nessa vida. Trabalhou nos muitos consulados chilenos pelo oriente, na Espanha (onde presenciou um dos maiores e mais emblemáticos conflitos do século XX, a Guerra Civil Espanhola), passeou por outros países da Europa e da América Latina. Foi Senador do Chile e candidato à presidência do mesmo país. E muitas outras coisas mais.

O livro é dividido em partes temáticas, ou seja, a cada parte ele trata de um tema diferente de uma fase de sua vida.

O Jovem Provinciano: parte em que o autor narra sua infância, a presença constante da chuva e suas primeiras experiências poéticas no sul chileno. E sua narrativa é bastante poética, de uma sensibilidade ímpar, suas descrições mostram as primeiras e grandes impressões do mundo e das pessoas que o rodeavam.

Perdido na Cidade: quando Neruda vai para a cidade grande,  em Santiago do Chile e incorre em novas descobertas abandonando os bucólicos campos sulinos e publica seu primeiro livro.

Os Caminhos do Mundo e A Solidão Luminosa: a nomeação como Cônsul do Chile em Rangoon, no Oriente transforma a vida do poeta que conhece um novo mundo nos lugares remotos que vive e passa a ter uma percepção mais ampla do homem. E essas duas partes foram as que mais gostei no livro. Para quem será professor de História, as suas passagens e descrições são magníficas para se trabalhar em sala de aula quando o assunto for Imperialismo ou oriente no início do século XX. São capítulos bastante curtos descrevendo fatos, pessoas, realidades sociais dos diversos países pelos quais ele passou como Cônsul. Todos ou quase todos colônias britânicas.

Espanha no Coração: a passagem que leva o nome de um de seus livros é também a mais controversa do livro. Pelo menos pra mim. Como estudo a Guerra Civil Espanhola, eu tenho suporte para fazer críticas ao que ele conta. As passagens magníficas que ele descreve ao lado do grande autor, assassinado na Guerra, Federico Garcia Lorca são interessantíssimas, no entanto a visão de um dos grupos que foi protagonista no processo revolucionário e em todo o conflito, os anarquistas, é inteiramente pautada por sua formação ideológica. Não é segredo para ninguém que os grupos anarquistas e o Partido Comunista espanhol (financiado pela União Soviética) disputavam ideologicamente a revolução e Neruda toma partido. O poeta vive a guerra civil espanhola e tais vivências influenciam de forma marcante sua literatura e o seu ingresso no Partido Comunista. Ele fica ao lado dos comunistas. Eu também tomo partido, fico ao lado dos anarquistas, mesmo fazendo um esforço para uma crítica histórica.

Em Busca dos Vencidos: Neste trecho ele retoma as questões já abordadas em Espanha no Coração e trata mais especificamente dos motivos pelos quais ele ingressou no Partido Comunista Chileno.

México Florido e Espinhoso: tão apaixonante quanto a Espanha é o México e neste trecho o poeta narra sua estadia no país. Conta suas conversas com os pintores e poetas mexicanos.

A Pátria em Trevas: Neruda nunca abandonou seu país. Sempre esteve preocupado com os problemas políticos e sociais de seu país. Nesta passagem o poeta nos conta o retorno ao Chile e sua passagem pela política do país como Senador. Sua passagem pelo deserto  no norte do Chile para conhecer e trabalhar pelos homens do pampa salitreiro contra os senhores do Sal. Além disso ele conta como saiu fugido de sua pátria quando foi perseguido pelo poder instituído mesmo sendo Senador.

Princípio e Fim de um Desterro: aqui o poeta nos conta sua passagem pela União Soviética, seu retorno à Índia e sua ida à China. E nos conta um pouco sobre sua paixão além da poesia: o mar. Sua coleção de conchas dos sete mares e sua fascinação pelos seres marinhos.

Navegação com Regresso: sua vida no Chile, depois de tantas viagens e tantas histórias. Agora apenas poeta, em sua casa, fazendo aquilo que sempre fez: escrevendo. Mas essa calmaria não dura muito, ele parte para mais viagens: Armênia, China, Ceilão, Argentina.

A Poesia é um Ofício: aqui Neruda fala sobre o ofício do poeta. Sobre sua poesia e seus amigos e inimigos também poetas. Outro dos meus trechos preferidos no livro. Ele nos fala sobre o Prêmio Nobel que ganha, sobre Cuba, Fidel e Che, Prestes e Stalin. Faz uma autocrítica e comenta seus críticos.

Pátria Dura e Doce: na última parte de seu livro Neruda fala sobre espiões, política e poética e sobre a  vida no Chile pré ditadura militar. E fala de forma emocionante sobre a ascensão e a queda de Allende no governo chileno. O último capítulo foi escrito poucos dias após os fatos que culminaram com a morte do presidente e com uma das mais sangrentas, repressivas e duras ditaduras na América Latina.

Neruda é um pseudônimo criado por Neftali Ricardo Reyes ainda na juventude com o intuito de esconder a autoria dos seus poemas de seu pai. O homem Neruda, poeta, viajou o mundo inteiro e divulgou sua poesia e seus ideais pelos diversos lugares por que passou e sua poesia chegou a todos os cantos do mundo.

Não sou comunista e nem concordo com as crenças do poeta, entretanto tenho em mim essa necessidade de justiça popular, esse desejo pela igualdade e um anseio pela liberdade dos povos. Compartilho de outra corrente de pensamento, de outra ideologia, mas não posso deixar de enaltecer a obra desse grande poeta do século XX que tanto defendeu os povos oprimidos e afirmou que “…a história é escrita pelos vencedores ou pelos que desfrutaram da vitória.” Mas ele próprio quis escrever história ao lado dos vencidos, e conseguiu, ao lado de muitos que compartilham de sua vontade.

Agora é hora de procurar seus poemas e ler, saborear suas palavras. E para sua vida não posso quantificar uma nota, mas para esse livro eu dou nota 3,5.

(de 0 a 5, sendo:0 – Péssimo; 1 – Ruim; 2 – Regular; 3 – Bom; 4 – Muito bom; 5 – Excelente)

Esta resenha faz parte do projeto Desafio Literário 2010 proposto pelo blog Romance Gracinha e corresponde ao mês de Fevereiro, cujo objetivo é ler um livro que nos remeta aos contos de fada.

Confira no blog do desafio as resenhas dos outros participantes para este mês.

E confira também os livros que li até agora para o desafio:

Janeiro – Quincas Borba (Machado de Assis)

FevereiroAs Crônicas de Nárnia Volume Único (C. S. Lewis)

MarçoOrgulho e preconceito, de Jane Austen

Anarca, feminista, vegana, cat lady, bookworm, roller derby, hiperbólica, entusiasta das plantas e constante aprendiz. Rainha de paus, professora de história, amante de histórias. Meu peito é de sal de fruta fervendo num copo d'água. ♀️✊Ⓥ

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Cristine
29 de abril de 2010 8:53 pm

Olá Daniela,
Gostei da sua resenha, claro que já havia ouvido falar de Neruda mas nunca li nenhum de seus poemas. Como gosto de biografias, achei muito interessante a vida do poeta, que realmente teve muitas histórias para contar.
No livro que li, A Casa dos Espíritos, a narradora fala do Poeta, que participou da história de luta pela liberdade naquele país fictício, que sabemos que é o Chile de Allende. Ela também fala do funeral do Poeta, que foi um grande acontecimento e ocasião para manifestações populares. Exatamente como na realidade.
Este mês está sendo muito legal no Desafio, quantos de nós não estamos conhecendo novos autores, novas realidades, lendo livros que não havíamos pensado em ler?
Grande abraço!

Ana Maria
1 de maio de 2010 7:47 pm

Que luxo! Que ótima escolha! Adoro tudo relacionado ao Pablo Neruda, à época da ditadura e à cultura chilena.

Vivi
1 de maio de 2010 11:09 pm

Uma escolha original! Saiu do lugar comum, hein? Interessante a bagagem cultura e reflexiva que esse livro parece nos proporcionar. Parabéns por uma resenha tão bem trabalhada. Dá gosto de ler.
Beijocas

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5 de maio de 2010 12:15 am

[…] A casa dos espíritos (1982) e De amor e sombras (1984). Sua carreira se deve em grande parte a Pablo Neruda, que a aconselhou a ser escritora, porque como jornalista “eres muy mentirosa”. Fonte: Tiro de […]

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3 de junho de 2010 1:14 pm

[…] Confesso Que Vivi (Pablo Neruda) – um livro de memórias do autor, que comprei esse ano, pois em um dos capítulos ele fala sobre a experiencia dele na Guerra Civil Espanhola (tema do meu Trabalho de Conclusão de Curso para o ano que vem). [resenha] […]

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4 de junho de 2010 4:12 pm

[…] – Confesso que vivi (Pablo Neruda) AKPC_IDS += "3186,";Popularity: 15% [?] GOSTOU DESTE TEXTO? […]

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2 de julho de 2010 11:44 am

[…] Abril – Confesso Que Vivi (Pablo Neruda) […]

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2 de dezembro de 2010 12:15 am

[…] Abril – Confesso Que Vivi (Pablo Neruda) […]

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22 de dezembro de 2010 11:44 am

[…] Abril – Confesso Que Vivi (Pablo Neruda) […]

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