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Matadouro 5 (Kurt Vonnegut)

Matadouro 5 (1969) é considerado a obra-prima de Kurt Vonnegut, escritor estadunidense de ascendência germânica nascido em Indianapolis, 11 de novembro de 1922 e faleceu em Nova Iorque no dia 11 de Abril de 2007.

O livro é ao mesmo tempo ficção científica e romance pacifista e possui altas dosagens de humor negro. Escrito em trechos curtos que não obedecem a uma ordem cronológica, a obra trata da vida de Billy Pilgrim (provável alter ego do autor), um homem comum, que nasceu e morreu nos Estados Unidos e que durante sua vida esteve na Segunda Guerra Mundial (assim como Vonnegut) e em Tralfamador, um planeta distante onde os seres vêem as coisas em 4 dimensões: quando os tralfamadorianos olham para os seres e objetos, eles vêem centopéias, o que me lembrou o filme Donnie Darko. Vonnegut deixa a sensação de que precisamos conhecer os tralfamodiranos de verdade. Ele levanta em apenas algumas frases a respeito desse planeta e seus habitantes pelo menos duas questões essenciais da existência humana, o livre arbítrio e o tempo.

Kurt Vonnegut e Billy Pilgrim têm em comum o fato de ambos terem sido prisioneiros de guerra e presenciado um dos maiores bombardeios da Segunda Guerra, em Dresden. O próprio Vonnegut é personagem em seu livro. Ele coloca duas ou três vezes alguma fala sua na narrativa e faz questão de dizer: aquele era eu, aquele era eu! E a descrição das passagens em que Billy está na Alemanha durante a guerra são tão reais que chegam a causar certo desconforto, o que é um mérito do livro.

A vida de Billy Pilgrim é contada através de suas viagens no tempo. Mas a guerra é a linha que alinhava toda a história de Billy. Todos os horrores de ser prisioneiro de guerra e às vezes a ironia de passar por situações que em outras ocasiões seriam até engraçadas fazem da guerra um elemento chave da narrativa. E Billy sabe disso também.

O texto é repleto de descrições da crueldade humana. Uma das mais horripilantes é a descrição que um dos personagens faz da vez em que ele matou um cão. A cruel verdade dos artefatos produzidos com os restos humanos de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e outros seres humanos exterminados nos campos nazistas aparece sucintamente, mas a sensação é incômoda demais (como em toda tragédia humana provocada pela ação de homens que se sentem superiores).

Existe um homem na trama que é estadunidense e luta ao lado dos alemães na guerra. Ele chama Campbell e escreve textos sobre o comportamento dos americanos quando prisioneiros de guerra. Um de seus textos é transcrito literalmente (mesmo que ficção) e descreve os americanos como homens que não amam a si mesmos e por isso não amam aos outros. Seria essa a explicação para o comportamento degradante que leva quase ao definhamento dos prisioneiros. Campbell tentou recrutar alguns prisioneiros de guerra, dentre ele Billy Pilgrim, em Dresden. A resposta que um dos soldados joga em cima dele é uma das coisas mais comoventes do livro. Esse soldado é Derby, que segundo o próprio autor, se torna um personagem neste momento (para Vonnegut a guerra não encoraja os personagens, transforma todos em uma massa).

Ao fazer uma pergunta para os tralfamadorianos sobre o segredo para se ter uma vida em paz Vonnegut e Billy dão um soco na face do leitor. E a resposta não deixa de ser menos intrigante. Os tralfamadorianos vêem tudo em 4 dimensões. Ok, até aí tudo bem. Eles tiveram muitas guerras e períodos terríveis. No entanto, como eles podem ver todos os momentos da vida de um ser e da própria história, eles simplesmente não olham para os momentos de horror. Fingem que eles não existem. Aí tem uma problemática que me é bastante cara: a memória. Para mim a crítica é clara como água. O esquecimento de certas partículas de nossa história faz parte de um entorpecimento constante. Tem uma frase que pode parecer clichê, mas é ótima para explicar o quero dizer: Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça (em relação ao período de ditadura civil-militar no Brasil).

Um dos trechos que mais chamaram minha curiosidade histórica foi aquele em que Vonnegut compara a visão de mundo dos tralfamadorianos com a produção terráquea conhecida por fotografia. Porque podemos olhar para ela sempre que quisermos e elas jamais mudarão. Cabe aí uma discussão historiográfica a respeito da fotografia dos elementos que determinam sua existência: aquele que aperta o botão da câmera e congela uma imagem e aquele que olha a imagem (de onde e quando ele olha).

Um termo interessante que o autor utiliza para definir a sensação de Billy Pilgrin sobre suas viagens no tempo (no caso, as que ele faz para o seu futuro em relação à guerra) é ‘lembrança do futuro‘. Esse descolar de si e parar em seu próprio corpo no passado ou no futuro, consciente da viagem acabara de realizar me faz lembrar do personagem Desmond de Lost no episódio da terceira temporada ‘Flashes Before Your Eyes‘, onde algo muito semelhante acontece.

Existem muitas teorias sobre viagens no tempo, uma delas diz respeito à centopéia, ou algo assim. Os tralfamadorianos vêem tudo como se fossem centopéias. Todos os momentos da vida de um ser ou da existência de um objeto estão ligados. Eles sempre aconteceram, continuam acontecendo e sempre acontecerão.

Chega a ser quase metalinguagem: alguns lêem ficção científica e os livros fictícios são tão malucos quanto a própria obra de Vonnegut. O autor dos livros fictícios também aparece na trama. O ‘Evangelho do espaço sideral’ é uma idéia tão genial que se ele existisse eu certamente leria. A idéia geral da obra fictícia é descrita tão bem que dá para imaginar o texto. E o mais interessante é a crítica social (geralmente presente no gênero). No caso dessa obra em questão, a crítica está na hipocrisia do cristianismo: “Há pessoas certas para serem linchadas”.

E para encerrar, destaco a frase que ele usa incessantemente no livro e que marca uma ironia cruel: Coisas da vida. Mulheres cozidas na guerra: coisas da vida; vela de gordura de judeu: coisas da vida; degradação: coisas da vida. Simplesmente genial. Ler Matadouro 5 exige um pouco mais  de digestão intelectual e preparação espiritual para se encontrar com uma verdade nua e crua sobre a humanidade.

Anarca, feminista, vegana, cat lady, bookworm, roller derby, hiperbólica, entusiasta das plantas e constante aprendiz. Rainha de paus, professora de história, amante de histórias. Meu peito é de sal de fruta fervendo num copo d'água. ♀️✊Ⓥ

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MoizaCARTUNS
1 de agosto de 2009 1:51 pm

Rapaz… pela descrição, o livro é crú pacas! Muito sangue, guerra e planetas distantes e, até, uma pitada de LOST (analogicamente falando, claro). Não conheço, mas parece coisa boa; muito boa 🙂

Abraços o/

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8 de janeiro de 2010 9:16 pm

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