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Calabar – o elogio da traição

Calabar – o elogio da traição foi escrita no início dos anos 70 e foi liberada para ser encenada apenas muitos anos depois. Em 1973 Chico Buarque e Ruy Guerra procuram Fernando Peixoto para encenar a peça que eles acabaram de escrever. Muitas tentativas e ensaios depois, a peça só foi liberada (ou anistiado, como diz o próprio Fernando no texto de abertura da peça) pela censura em 1980. Um texto que foi escrito durante um ano, passou por muitas revisões, recomeços e pesquisas. Por se tratar de um tema histórico – a guerra entre Holandeses e Portugueses no Nordeste brasileiro no século XVII – os autores careciam de muito trabalho de investigação histórica. E um diferencial importante foi o trabalho de parceria, Chico e Ruy escreveram e pesquisaram juntos.

No entanto, mesmo se tratando de um texto que toca em um tema histórico, ele não se pretende uma reconstituição minuciosa de um acontecimento histórico. A História é utilizada como matéria para um reflexão em torno de uma tema que dá o argumento do texto: a traição de Calabar (que troca de lado no meio da guerra e passa a apoiar os Holandeses) e as outras tantas traições que ocorrem no texto. Os personagens e fatos históricos são usados para refletir sobre o problema e o significado de traição. Nesse sentido, a própria traição de Calabar (fato histórico) é questionada e a figura dele remete também ao homem que foi transformado em herói pelos holandeses. O que se apresenta ao espectador/leitor é a opção de Calabar em apoiar os holandeses, pois ele acreditava que eles poderiam trazer ao Brasil um governo mais livre, humano, menos opressor e escravista que os portugueses. Ele acreditou e seguiu sua crença até o fim, quando foi assassinado, esquartejado em praça pública para servir de exemplo ao restante das tropas portugueses.

É importante notar a estrutura do texto teatral, dividido em dois atos, que foge da dramaturgia bem comportada apresentada até então por diversos dramaturgos e companhias teatrais, pois o relato é descontínuo e as cenas ocorrem livremente, independente umas das outras. Porém o texto completo apresenta uma unidade lógica e objetiva. Entretanto, o que considero mais importante e o maior mérito da peça enquanto texto, mas principalmente enquanto espetáculo, é a maneira como os conflitos são resolvidos cenicamente. Ele é popular e desmistificador da História e de seu tema central, e usa a comédia e a música para falar com seu espectador (no caso da leitura isso é um pouco menos forte, é preciso imaginar o espetáculo no palco, arena, sala, rua, para ter uma noção dessas resoluções cênicas). Mesmo com o tom de comédia e musical, existem momentos de intimismo e de exposição da alma dos personagens.

Todas as falas, sejam de comédia, música, diálogo ou monólogo, são fortes e ásperas, revelam um realismo e um distanciamento crítico que permite observar e refletir tanto o fato histórico colocado em cena quanto a sociedade em que o o texto nasceu e, até mesmo, o mundo em que vivemos hoje. A leitura, por ser diferenciada no sentido de ser uma apresentação diferente e não usual para a maioria dos leitores, pode não fluir muito bem, o que não foi meu caso Estou acostumada a ler texto teatral, pois já me aventurei no teatro e até encenei alguns espetáculos. A leitura, para mim, foi muito rápida e fluida. Achei o texto muito bem escrito e seu argumento muito importante. É um texto que recomendo para quem se interessa na reflexão e crítica de nossa sociedade – e penso que todos deveriam se interessar. Mesmo assim achei que o texto não surgiu todas as minhas expectativas em relação ao enredo e aos personagens.

Calabar – o elogio da traição
Chico Buarque e Ruy Guerra
Editora civilização brasileira
149 páginas
Nota: 3/5

Esse texto faz parte do projeto de blogagem coletiva Desafio Literário 2011, proposto pelo blog Romance Gracinha. A resenha corresponde ao mês de Junho, cujo objetivo é ler uma Peça Teatral.

Confira no blog do desafio as resenhas dos outros participantes para este mês. Ou descubra quais foram as minhas escolhas.

Participe, comente, leia.

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Confira as outras leituras feitas para o Desafio Literário 2011:

Janeiro:
Coraline, Neil Gaiman
Memórias da Emília e Peter Pan, de Monteiro Lobato

Fevereiro
Che Guevara – a vida em vermelho, de Jorge G. Castañeda
O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira

Março
As Brumas De Avalon Livro 1 – A Senhora Da Magia, de Marion Zimmer Bradley
As Brumas De Avalon Livro 2 – A Grande Rainha, de Marion Zimmer Bradley

Abril
O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams
O Restaurante no Fim do Universo, de Douglas Adams
A Vida, o Universo e Tudo Mais, de Douglas Adams
Até mais, e obrigado pelos peixes!, de Douglas Adams
Praticamente Inofensiva, de Douglas Adams

Maio
A Última Trincheira, de Fábio Pannunzio
Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado

Anarca, feminista, vegana, cat lady, bookworm, roller derby, hiperbólica, entusiasta das plantas e constante aprendiz. Rainha de paus, professora de história, amante de histórias. Meu peito é de sal de fruta fervendo num copo d'água. ♀️✊Ⓥ

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Lyani
30 de junho de 2011 7:57 am

Como disse em diversos comentários que fiz pelas leituras dos demais participantes, esse mês foi um desafio pra mim, pois não gosto do gênero literário! Mas lendo as resenhas, tenho sentido vontade de também conhecer essas peças interessantes que tenho visto! Isso é muito bom!
Parabéns pelo projeto DL, parabéns pela resenha!
Abraço!

Vivi
1 de julho de 2011 1:51 pm

Olá, Dani! Legal que o DL nos proporcione conhecer obras tão variados, de cunho crítico mas sem perder o caráter de entretenimento. Jóia a sua resenha!
Beijocas

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5 de agosto de 2011 6:06 pm

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25 de setembro de 2020 2:30 pm

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