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Gota D’água – uma tragédia carioca

Gota D’água é uma releitura da Tragédia Grega de Eurípedes escrita por Paulo Pontes e Chico Buarque durante a Ditadura Militar no Brasil. A tragédia de Chico e Paulo sai da Grécia e chega nos morros cariocas. É a história de Joana e Jasão. E da vizinhança da Vila do Meio-Dia. Jasão trocou Joana para casar-se com Alma, filha do rico Creonte. A história se desenrola aos moldes do original grego, mas ambientado no Rio de Janeiro e ganhando contornos modernos, personagens novos e novas motivações. Joana sente-se traída, grita, chora, faz o diabo.

Mas Joana não é Medéia, e no Rio ela é macumbeira. Promete desgraçar a vida de Jasão, de Alma e de Creonte, que não só é o pai de Alma como construiu o conjunto habitacional popular onde Joana e seus vizinhos moram e cobra preços absurdos pelas casas. Cada uma já pagou o preço inicial, mas os juros mais do que dobraram o valor do imóvel. Solidários com Joana e indignados com a situação de devedores em que se encontram, seguem para um boicote ao pagamento das prestações. Muito interessante como a relação de classes e os motivos pontuais narrados na peça são universais e representam a realidade social do país nos anos 70, e, porque não, nesse início de século XXI.

Ao contrário da tragédia grega, que sempre possui três atos, Gota D’água possui dois atos e os sets retratam um botequim – local de encontro dos homens -, o set das lavadeiras -onde as personagens femininas conversam. No set da oficina, está o velho Egeu, comunista, onde passam alguns amigos. Egeu é um personagem importante para o desenrolar da peça e leva o mesmo nome do personagem que auxilia Medéia na peça de Eurípedes. Ele tenta apaziguar Joana ao mesmo tempo em que incita os moradores a transformarem a revolta silenciosa contra os abusos de Creonte em manifestação de cunho social.

Outra característica importante que vi nesse texto foi a permanência de um coro, elemento fundamental da tragédia grega, que no texto de Chico e Paulo está colocado pelas amigas de Joana, que contracenam com ela também como personagens individuais, mas que assumem o coro quando necessário. As cenas e os diálogos são fortes e poéticos (aliás, a peça é escrita em verso, ao exemplo dos textos gregos) e me encantou o ritual de macumba que é realizado em determinado momento do espetáculo (e não pensem que uso macumba como uma expressão pejorativa, muito pelo contrário, essa é a expressão usada no texto para referenciar a religiosidade o o ritual de Joana).

Ao contrário do texto grego, que as cenas fortes e violentas ocorrem atrás da cortina, ou sejam, elas são apenas referenciadas e nunca são encenadas para o espectador, em Gota D’água o texto prevê a encenação da morte das crianças e do suicídio de Joana. E é um momento muito bonito, lírico e carregado de significação para entender o contexto político-social da época. O texto usa uma história que é mito grego, virou tragédia pelas mãos de Eurípides, teve muitas releituras ao longo dos anos para falar sobre submissão feminina, preconceito contra a mulher, a mobilização popular baseada na condução das massas, efeitos da ascensão social,  e a exploração dos trabalhadores nesse sistema de conjuntos habitacionais onde se paga cada vez mais e mais juros.

Embalado musicalmente por muito samba (Jasão ascendeu socialmente pelo relacionamento com Alma e pelo sucesso de seu samba nas rádios) eu fiquei com vontade de assistir uma montagem desse espetáculo, pois possui dois aspectos importantes: o tom sério e que nos leva a reflexão está conciliado com a alegria, a música e a proximidade com a realidade brasileira.

Gota D’água – uma tragédia carioca
Chico Buarque e Paulo Pontes
192 páginas
Nota: 4/5

Esse texto faz parte do projeto de blogagem coletiva Desafio Literário 2011, proposto pelo blog Romance Gracinha. A resenha corresponde ao mês de Junho, cujo objetivo é ler uma Peça Teatral.

Confira no blog do desafio as resenhas dos outros participantes para este mês. Ou descubra quais foram as minhas escolhas.

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Confira as outras leituras feitas para o Desafio Literário 2011:

Janeiro:
Coraline, Neil Gaiman
Memórias da Emília e Peter Pan, de Monteiro Lobato

Fevereiro
Che Guevara – a vida em vermelho, de Jorge G. Castañeda
O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira

Março
As Brumas De Avalon Livro 1 – A Senhora Da Magia, de Marion Zimmer Bradley
As Brumas De Avalon Livro 2 – A Grande Rainha, de Marion Zimmer Bradley

Abril
O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams
O Restaurante no Fim do Universo, de Douglas Adams
A Vida, o Universo e Tudo Mais, de Douglas Adams
Até mais, e obrigado pelos peixes!, de Douglas Adams
Praticamente Inofensiva, de Douglas Adams

Maio
A Última Trincheira, de Fábio Pannunzio
Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado

Junho
Calabar – o elogio da traição, de Chico Buarque Ruy Guerra

Anarca, feminista, vegana, cat lady, bookworm, roller derby, hiperbólica, entusiasta das plantas e constante aprendiz. Rainha de paus, professora de história, amante de histórias. Meu peito é de sal de fruta fervendo num copo d'água. ♀️✊Ⓥ

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1 de julho de 2011 12:18 am

[…] Gota D’água, Chico Buarque e Paulo Pontes […]

Vivi
1 de julho de 2011 6:38 pm

Caramba! Olho para esse título e só vejo intensidade. Bjs

Jussara
2 de julho de 2011 7:09 pm

Gosto muito dessa peça. E vi a primeira montagem com a Bibi Ferreira no papel de Joana! Inesquecível! Deveriam remontá-la pelo impacto que causa. Gostei muito da resenha.
abs
Jussara

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21 de julho de 2011 9:05 am

[…] Calabar – o elogio da traição, de Chico Buarque Ruy Guerra Gota D’água, Chico Buarque e Paulo Pontes GOSTOU DESTE TEXTO? […]

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26 de julho de 2011 7:39 pm

[…] Calabar – o elogio da traição, de Chico Buarque Ruy Guerra Gota D’água, Chico Buarque e Paulo Pontes As Relações Naturias: três comédias, Qorpo Santo GOSTOU […]

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18 de agosto de 2011 10:53 am

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8 de setembro de 2011 8:15 pm

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7 de dezembro de 2011 6:35 pm

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27 de setembro de 2020 5:42 pm

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