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Morte e vida severina e outros poemas para vozes

Eu confesso que não sou muito chegada em poesia. Não tenho o dom para apreciá-las como deveria, são poucas as que me agradam. Não sei porque, mas desde que me conheço por leitora sou assim. No entanto, uma das coisas mais lindas que já li na minha vida foi a apresentação de Severino em Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto. É simples, sucinto, e ao mesmo tempo tão forte e marcante que é impossível esquecer quem é Severino. Ele é um nordestino, ele é ao mesmo tempo um personagem único e inúmeros brasileiros.

O retirante nordestino a quem coube o nome de Severino percorre a mesma trajetória de milhões de cidadãos brasileiros. Ele enfrenta as adversidades que essa vida severina que se apresenta para muitos e sai da morte para alcançar a vida.

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR
QUEM É E A QUE VAI
— O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mais isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte Severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

Eu fiquei realmente emocionada ao ler esse trecho de Morte e Vida Severina, que tem como subtítulo “auto de natal pernanbucano. O texto é assim estruturado, como um auto de natal – o formato de teatro que encenava a vida de santos e outras temáticas religiosas no Medievo – dividido em 18 cenas ou fragmentos poéticos.

Em Morte e Vida Severina e Outros Poemas para Vozes somos apresentados a quatro poemas de João Cabral de Melo Neto. São eles: O Rio, Morte e Vida Severina, Dois Parlamentos e Auto do Frade.

O poema O Rio descreve a viagem do rio Capiberibe do interior de Pernambuco até o mar. O percurso narrado em primeira pessoa pelo próprio rio mostra o abandono das cidades no sertão, os retirantes, a pobreza e o contínuo processo de empobrecimento do Nordeste, o desvio dos rios para a instalação de usinas, a desativação de engenhos e a poluição gerada por essas usinas. Dentre os quatro poemas do livro, esse foi o que menos gostei. Não conseguia me prender na narrativa do poema, apesar de achar sua temática e a concepção muito interessantes.

O poema Dois Parlamentos é dividido em duas partes. A primeira parte é denominada Congresso no Polígono das Secas, onde João Cabral compara o sertão com um cemitério auto-suficiente, onde o sertanejo nasce e morre e nem os vermes podem se proliferar. A segunda parte é chamada Festa na Casa-grande, na qual o autor fala dos habitantes do engenho (que já eram poucos na época em que o poema foi escrito, pois não conseguiram competir com as usinas), referidos pelo autor como um pequeno mamífero de nome cassaco, pobres, sujos e famintos, de pouca instrução, sem chances de desenvolvimento e uma certeza: a morte na miséria. As duas partes do poema tem números aleatórios precedendo seus fragmentos. Achei interessante a organização dos fragmentos desse poema, e as falas (pelo menos foi assim que percebi o texto) são bastante enfáticas o tom de denúncia me fizeram gostar bastante desse poema.

Já o poema Auto do Frade tem como assunto um fato histórico: o dia da morte do rebelde Frei Caneca, um dos líderes da Confederação do Equador. O poema, que é também um auto, narra a preparação, o cortejo do frei da prisão até a praça onde a execução acontecerá e a própria execução. Muitas pessoas acompanham o cortejo. Caneca fala algumas palavras mas é obrigado a calar-se. As autoridades temem o poder da palavra do frei. Na praça ninguém quer executar o religioso rebelde, prisioneiros recebem a promessa de liberdade para realizarem a árdua tarefa de matá-lo, mesmo assim recusam-se, pois temem a ação de alguma força superior. Ocorre então que após algumas horas de espera, decide-se formar um pelotão de doze homens para o fuzilarem, pois nenhum destes ousaria fazê-lo sozinho. Assim Frei Caneca e morto fuzilado. Esse poema é muito interessante pela temática, que me conquistou logo de início, afinal eu não resisto a temas históricos…

Entretanto Morte e Vida Severina é o melhor poema dos quatro, não é à toa que o livro intitula-se Morte e Vida Severina e Outros poemas para vozes. Ele é o carro chefe do livro e talvez o mais famoso poema do autor. Tão famoso e importante que foi musicado por Chico Buarque em 1965 para sua encenação e desde então foi apresentado diversas vezes no teatro e, além disso, foi adaptado para o cinema (1977) e para a televisão (1981). Recentemente foi feito também um desenho animado.

O Especial para TV (abertura e apresentação de Severino):

Eu não entendo nada de poesia, quando leio avalio em termos totalmente subjetivos, o famoso gostei porque gostei ou não gostei porque não gostei. E em termos gerais eu gostei do livro, são bons poemas e em cada um deles tenho trechos que me agradaram mais e outros menos. E Morte e Vida Severina é um poema para a vida toda, especialmente a apresentação do sertanejo. Não tem como esquecer. Uma grande surpresa, apesar de já ter lido a respeito e ter ficado curiosa para descobri esse autor, foi uma grande e bela surpresa finalmente tê-lo feito.

Morte e vida severina e outros poemas para vozes
João Cabral de Melo Neto
Editora Nova Fronteira
136 páginas
Skoob | Goodreads
Nota: 3/5

Esse texto faz parte do projeto de blogagem coletiva Desafio Literário 2011, proposto pelo blog Romance Gracinha. A resenha corresponde ao mês de Agosto, cujo objetivo é ler clássicos da Literatura Brasileira.

Confira no blog do desafio as resenhas dos outros participantes para este mês. Ou descubra quais foram as minhas escolhas.

Participe, comente, leia.

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Aproveita e segue a equipe do Desafio Literário 2011 no twitter também:

@vivi@danihaendchen@queromorarlivr e eu, @clandestini.

Confira as outras leituras feitas para o Desafio Literário 2011:

Janeiro:
Coraline, Neil Gaiman
Memórias da Emília e Peter Pan, de Monteiro Lobato

Fevereiro
Che Guevara – a vida em vermelho, de Jorge G. Castañeda
O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira

Março
As Brumas De Avalon Livro 1 – A Senhora Da Magia, de Marion Zimmer Bradley
As Brumas De Avalon Livro 2 – A Grande Rainha, de Marion Zimmer Bradley

Abril
O Guia do Mochileiro das Galáxias, de Douglas Adams
O Restaurante no Fim do Universo, de Douglas Adams
A Vida, o Universo e Tudo Mais, de Douglas Adams
Até mais, e obrigado pelos peixes!, de Douglas Adams
Praticamente Inofensiva, de Douglas Adams

Maio
A Última Trincheira, de Fábio Pannunzio
Esqueleto na lagoa verde, de Antonio Callado

Junho
Calabar – o elogio da traição, de Chico Buarque Ruy Guerra
Gota D’água, Chico Buarque e Paulo Pontes
As Relações Naturias: três comédias, Qorpo Santo

Julho
Nunca fui a garota papo-firme que o Roberto falou, de Cristiane Lisbôa
Areia nos Dentes, de Antônio Xerxenesky
elvis & madona [uma novela lilás], de Luiz Biajoni

Agosto
Olhai os lírios do campo, de Erico Veríssimo

Anarca, feminista, vegana, cat lady, bookworm, roller derby, hiperbólica, entusiasta das plantas e constante aprendiz. Rainha de paus, professora de história, amante de histórias. Meu peito é de sal de fruta fervendo num copo d'água. ♀️✊Ⓥ

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Monica Carneiro
27 de agosto de 2011 8:12 pm

Dani, que lindo seu texto!!!Ficou muito bom, mesmo. Adoro este poema. é super emocionante! João Cabral é tudo de bom, sabe falar do sofrimento, determinação e da raça do povo nordestino com muita sabedoria.Acho emocionante a apresentação do Severino, chego até a chorar, acredita? mas também adoro a parte que ele encontra a morte pelo caminho, mas o mais lindo é quando ele chega a foz do Capibaribe.
Valeu Dani, adorei
Bju

Vivi
Vivi
30 de agosto de 2011 10:39 am

Oi, Dani. Gosto tanto de poesias. Analiso-as também pelo viés 100% subjetivo. Quero muito ler Morte e vida Severina. Beijocs

Ticiane Vitória
8 de setembro de 2011 11:40 pm

Gostei da abordagem que deu à poesia Modernista do João Cabral. Eu particularmente adoro a “Morte e Vida Severina” e tive o prazer de vê-la recitada no teatro em um monólogo perfeito que homenageava o autor.
Enfim, belo post e leia mais poesia!
Beijos.

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8 de novembro de 2011 4:42 pm

[…] dos Anjos e Fernando Pessoa. E recentemente li um livro de poesias que eu gostei bastante, que é o Morte e vida severina e outros poemas para vozes, do João Cabral de Melo Neto, que contém um dos trechos mais lindos que eu já li da Literatura […]

trackback
2 de janeiro de 2012 3:13 pm

[…] Olhai os lírios do campo, de Erico Veríssimo Morte e vida severina e outros poemas para vozes, de João Cabral de Melo Neto Contos Gauchescos & Lendas do Sul, de Simões Lopes […]

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